DISCUSSÃO
10.2 O QUE CONDICIONOU A DINÂMICA DE QUEIMADAS NO ESTADO DO MATO GROSSO?A discussão sobre as variáveis condicionantes da dinâmica de queimadas foi pautada em resultados obtidos por trabalhos científicos, recentemente publicados, que apresentaram discussões importantes e abrangentes sobre as relações existentes entre os desmatamentos, as queimadas, o extrativismo madeireiro, a atividade pecuária, o cultivo de soja, o asfaltamento de estradas e a implantação de assentamentos rurais em áreas isoladas da Amazônia Legal.
Alguns aspectos da complexa rede de relações e dependências dessas atividades e fenômenos são consensuais e aparecem de forma consistente em praticamente todas as vertentes de discussão. Não há nenhuma dúvida de que a atividade pecuária exerce um papel fundamental nas frentes de expansão da fronteira agrícola, assim como também não há dúvida quanto à responsabilidade do Estado em relação aos atuais processos de apropriação privada de terras, nas frentes de expansão e ocupação. Neste trabalho, essas duas situações ficaram fortemente evidenciadas na formação dos grupos D e F, situados nas classes de dinâmicas média a alta.
Talvez, a menor entropia e celeuma, sobre a questão dos avanços da fronteira agrícola, sejam encontrados em torno das discussões relacionadas à necessidade de se estabelecer um novo cenário para a questão fundiária. A relação direta entre a disputa pela posse de terras e as taxas de desmatamento é, talvez, a única unanimidade entre todos os autores. A alta e significativa correlação encontrada entre a incidência de pontos de queimadas e as taxas de desmatamento (Anexo 3) corrobora essa tese.
Os resultados obtidos nesse trabalho sugerem a ocorrência de diferentes composições de atores e relações, agindo em diferentes momentos do processo de expansão da fronteira, que visam o atendimento das necessidades presentes de cada grupo, através da geração de recursos e renda, mas ao mesmo tempo procurando garantir as oportunidades futuras.
Embora haja significativa heterogeneidade no destaque dado ao papel das atividades da pecuária e da agricultura de grãos, prioritariamente para a soja, nos trabalhos mais recentemente publicados, é unânime a visão de que a pecuária é ainda a atividade produtiva mais importante na frente de expansão da fronteira. Essa importância da pecuária é especialmente flagrante no trabalho de Margulis (2004), no qual o autor destinou um reduzido espaço para falar sobre o papel da agricultura na questão dos desmatamentos, concentrando-se, quase que exclusivamente, à questão da pecuária.
Sem dúvida essa visão de que a atividade pecuária é a principal, senão a única, responsável pelo avanço da fronteira agrícola, atingiu seu extremo no trabalho publicado por Brandão et al. (2005, p. 2), no qual os autores, minimizando todas as reflexões desenvolvidas no recente artigo publicado pela revista The Economist (THE BRAZILIAN, 2004, p. 33-35), sugerem "o asfaltamento, o mais rapidamente possível, da BR-163, já que, independentemente do efeito benéfico, via redução de custo de transporte que esse asfaltamento trará, essa melhoria de infra-estrutura viabilizará o plantio de soja no entorno dessa estrada e permitirá que a política de preservação ambiental do governo seja mais eficiente do que é hoje". Frente aos resultados obtidos, parece ser recomendável, nesse caso específico, a consideração, anterior, de questões como a irreversibilidade dessa ação, os limites ambientais e a adoção do princípio da precaução (Romeiro, 2004, p. 13).
A idéia de que a agricultura da soja estabelece um padrão e uma dinâmica ecologicamente mais aceitável assume a premissa de que ela realmente não tem nada à ver com o processo de expansão da fronteira que, portanto, estaria exclusivamente relacionado à atividade da pecuária.
Essa visão parece ser um pouco premeditada, uma vez que desconsidera completamente a existência de relações, ainda que indiretas, da expansão da atividade agrícola da soja com todo o contexto e dinâmica associado à expansão da fronteira, conforme assume Brandão et al. (2005, p. 18). A entrada da soja não ocorre pela mudança de atividade dos mesmos atores presentes nas áreas já ocupadas; muito pelo contrário, ela ocorre através da substituição radical dos atores e, conseqüentemente, do padrão tecnológico e dos processos produtivos adotados. As políticas públicas agrícolas brasileiras ainda não são habilitadas a promover a transformação de pequenos agricultores ou pecuaristas em grandes empresários do setor agrícola.
A conseqüência direta dessa relação é a transferência de terras entre os diferentes grupos e o deslocamento dos pequenos agricultores e pecuaristas descapitalizados em busca de novas oportunidades que, em função das dificuldades econômicas e dos primitivos padrões tecnológicos adotados, estão situadas invariavelmente na fronteira especulativa.
Os resultados deste trabalho sugerem, ainda, que existe no caso da atividade pecuária, a necessidade de se fazer uma distinção muito clara entre duas modalidades: a pecuária mecanizada e a pecuária convencional, relacionada ao contexto especulativo. Ficou evidente, através das análises espaciais, que a distribuição dos pontos de queimadas da pecuária mecanizada assumiu um padrão muito semelhante àquele obtido com a agricultura de grãos. Os maiores problemas identificados com a pecuária foram encontrados na modalidade relacionada às atividades especulativas, localizadas exatamente nas frentes de expansão, onde a posse da terra depende fundamentalmente da abertura de novas áreas e sua utilização efetiva.
Provavelmente, em função da sua maior mobilidade espacial e dos processos produtivos inerentes à atividade pecuária, ela é mais habilitada a cumprir o papel de caracterização do uso efetivo, objetivando a obtenção da posse, segundo o protocolo convencional descrito por Binswanger (1991, p. 823). Essa tese é claramente defendida no trabalho de Margulis (2004, p. 59) e no trabalho publicado pelo grupo Amigos da Terra – Amazônia Brasileira (GT Florestas, 2004, p. 4), onde os autores concluem que a economia dos agentes na fronteira especulativa é mais baseada na comercialização de terras do que em retornos produtivos da pecuária.
Mesmo que a soja esteja entrando quase exclusivamente sobre áreas de pastagem degradada, como sugere o trabalho de Brandão et al. (2005, p. 11), a substituição e a transferência de posse acarretam a capitalização dos proprietários daquelas pastagens improdutivas e, como conseqüência possível, agregaria mais entropia à dinâmica das frentes de expansão. A idéia do estabelecimento do consórcio entre a atividade pecuária e a soja, como uma possibilidade de, por um lado, reduzir os custos de apropriação de terras para desenvolvimento do cultivo de grãos e, por outro lado, devolver a qualidade dos solos degradados pela pecuária, através do cultivo da soja por alguns anos, é excepcionalmente interessante, tanto do ponto de vista econômico quanto ecológico, embora não haja nenhuma evidência de que ela esteja realmente ocorrendo na escala sugerida.
Uma visão mais integrada do processo de expansão da fronteira e das relações entre os diferentes atores envolvidos nesse cenário foi apresentada no trabalho de Becker (2001, p. 18), onde a autora relaciona a extração de madeira, a expansão agrícola e a abertura de estradas como as principais atividades responsáveis pelos desmatamentos. Essa visão mais ampla e articulada do problema foi confirmada pelos resultados obtidos com a dinâmica das queimadas, que proporcionou a formação de diferentes grupos de municípios, cada um circunstanciado por um arranjo específico de variáveis e diferentes comportamentos de incidência de queimadas.
Apesar de não tratar o fenômeno das queimadas de forma específica, o trabalho de Alencar et al. (2004), definiu o desmatamento como um fenômeno de natureza complexa, que não pode ser atribuído a um único fator e considera que a exploração seletiva e predatória de madeiras nobres funciona como uma espécie de "cabeça-de-ponte" do desflorestamento. A alta correlação existente entre esses dois fenômenos possibilitou o cotejamento dos resultados deste trabalho com boa parte dos resultados do trabalho de Alencar et al. op. cit.
Comparando os resultados obtidos na análise espacial dos pontos de queimadas e as áreas de uso restrito, com os resultados do trabalho de Alencar et al. op.cit., p. 59, onde essas áreas formam as denominadas "áreas protegidas", foi possível identificar uma total coerência no que foi sugerido: "por ter sua dominialidade bem definida, as áreas protegidas, que incluem as unidades de conservação e as terras indígenas, desempenham um importante papel na contenção do desmatamento". Apesar de não entrar no mérito da discussão dos motivos que levaram a essa constatação, os resultados obtidos neste trabalho confirmaram a expressiva redução da incidência de queimadas no interior das áreas de uso restrito (terras indígenas e unidades de conservação).
Relacionando, a pecuária, a agricultura familiar (convencional), a agricultura mecanizada, a exploração madeireira e os incêndios florestais como atividades e fenômenos que devem ser considerados simultaneamente no combate às causas dos desmatamentos, as hipóteses e os dados apresentados pelo trabalho de Alencar et al. op. cit. foram confirmados com os resultados do desenvolvimento deste trabalho, apesar de terem sido na maioria das vezes, baseadas em estudos de casos específicos.
Por fim, ao mapear os pontos e a dinâmica de queimadas e identificar entre as variáveis condicionantes da sua incidência a variável de extração madeireira, os resultados deste trabalho mostram que é possível utilizar essa informação como um ponto de partida para a estruturação de políticas de monitoramento e controle de novas frentes de expansão, como foi sugerido por Barreto (2005, p. 19). A complementariedade entre um novo programa integrado de monitoramento de queimadas e o monitoramento dos desmatamentos, já desenvolvido no âmbito do PRODES, parece ser fundamental para provocar a antecipação da identificação das ações predatórias e ilegais, atualmente deflagradas apenas quando o processo é irreversível, em função de o PRODES detectar, delimitar e mapear, apenas, as áreas que apresentam a vegetação original completamente desflorestada (corte raso).
O Anexo 6, mostra através de imagens do Satélite Landsat, algumas das alterações ignoradas pelas atuais estimativas governamentais de desmatamento, desenvolvidas no âmbito do projeto PRODES, tornando evidente a necessidade de se atuar de forma mais consistente e abrangente na identificação, monitoramento e controle do avanço da fronteira agrícola.